Foto por Sérgio Lima / Poder360

Como a 1ª morte por covid-19 no Brasil me afeta

Eu imagino a equipe médica quando o bipe contínuo anunciou que, apesar dos esforços de todos, aquele senhor de 62 se tornou a primeira vítima fatal da covid-19 no Brasil.

Eu imagino a garganta seca do médico ou médica que precisou declara o fato em voz alta.

Eu imagino se as pessoas naquela sala olharam umas para as outras por trás das máscaras, apreensivas, num cálculo silencioso de quantas vezes aquela cena iria se repetir. Ou se apenas contemplaram o rosto do homem que não abrirá os olhos para contemplar todo o pesar e preocupação que o fim da vida dele levará a um país inteiro.

Eu imagino meus colegas jornalistas precipitando―se na direção das assessorias e de todas as fontes em seus arsenais para conseguir a informação correta ― porque as pessoas precisam saber.

Porque estamos em guerra contra um inimigo invisível e silencioso, e a informação é a única arma que temos para nos defender do pânico e confusão que ele pode armar contra nós. Sentimentos que podem ser mais letais e duradouros que a própria doença, se não lhe opormos resistência.

E eu imagino ― eu espero ― que meus colegas, em meio à pressão do deadline, ao receio de se expor à contaminação e à necessidade de manter a calma no fronte de batalha, tenham se lembrado que a vítima tem nome, sobrenome e família.

Que ele não é só um número que vamos atualizar no fim do dia e colocar em um infográfico para o leitor entender.

Além de devaneios

Como a maioria dos seres humanos nesse momento, eu espero, imagino e anseio muitas coisas. E é aí que eu preciso exercitar uma faculdade que é, de certa forma, o contrário da imaginação: a memória.

Eu preciso lembrar que doenças fazem parte da nossa realidade e que, por devastadoras que sejam, jamais derrotaram a nossa espécie. A peste negra, por exemplo, dizimou metade da população européia no século XIV. E a Europa, bem ou mal, continua aí.

Eu preciso lembrar que é uma questão de tempo até que isso passe. Já lidamos com o coronavírus em 2003 e 2012, e a maior parte das pessoas é infectada por algum tipo de coronavírus ao longo da vida.

Eu preciso lembrar que a taxa de mortalidade da covid-19 é menor  que 4%, enquanto a taxa de recuperação supera os 42%. E isso porque ainda nem temos um tratamento específico para a doença em si.

Eu preciso lembrar também que nossa ciência e comunicação nunca estiveram tão avançados e, portanto, nunca estivemos tão preparados para desenvolver tratamentos e vacinas como estamos hoje. China e Estados Unidos já testam vacinas em seres humanos.

Eu preciso lembrar que é inútil me desesperar em relação às coisas que fogem do meu controle. E que isso não vale só para pandemias de coronavírus e queda nas Bolsas de Valores.

Eu preciso lembrar que sou responsável pelas minhas próprias atitudes e que, em vez de especular, eu deveria me esforçar em aplicar as recomendações de higiene e precaução no meu dia a dia.

Eu preciso lembrar que é preferível alguns desconfortos sociais agora do que arriscar as consequências para mim e para os outros. Que eu não vou morrer por deixar de ir ao bar nessa sexta, mas que alguém pode morrer se eu pegar e repassar covid-19.

Eu preciso lembrar que vivemos em um mundo conectado e que muita informação não é o mesmo que informação verdadeira. Empresas de tecnologia investiram pelo menos 10 milhões de euros (cerca de R$ 55 milhões) para rastrear e combater fakenews, mas sem muito sucesso.

O principal problema? As informações falsas não vem de grupos organizados e sistemáticos, mas de rumores espalhados por usuários individuais.

Eu preciso lembrar que minha ânsia em espalhar informação relevante não pode atropelar o processo de apuração e checagem ― e que o mundo seria um lugar menos desesperador se todos fizessem o mesmo.

Enfim, eu preciso lembrar que existem outras coisas além de coronavírus (coisa difícil para uma jornalista nesse momento).

Então, com toda licença, agora eu vou cuidar de outras coisas. Acho que você deveria fazer o mesmo.


No segundo que eu vi a notícia na tela do meu celular, senti um peso no estômago. Confesso que meu primeiro reflexo foi repassar o dado para minha redação. Mas depois, tudo isso acima (e muito mais) ficou zunindo na minha cabeça e não me deixaria em paz até eu colocar na tela. Quando eu terminei de revisar o texto, chegou a notícia que uma mulher também falecera da doença. Os dados não estão muito claros até agora, mas o fato é que mais pessoas morreram – e que mais morrerão até essa história terminar. Meus sinceros sentimentos às famílias e também aos profissionais de saúde que estão na linha de frente dessa crise.

Arte por Rafael Damiani

O Espadachim de Carvão e As Pontes de Puzur

Autor: Affonso Solano
Editora: Leya
ISBN:
9788577345687
Ano: 2015
Páginas: 190
Avaliação: 4/5

No segundo volume da série O Espadachim de Carvão, Adapak precisa lidar com as descobertas sobre sua origem ao mesmo tempo que compreende a história de Kurgala – e como ambas as coisas parecem fatidicamente conectadas. A principal arma do espadachim nessa aventura são seus primeiros e melhores amigos: os livros, agora manchados com os feitos de seitas fanáticas, histórias que não são o que parecem e mais perguntas que respostas. Só que Adapk precisa se manter atento e pronto para o combate. Fora das páginas, inimigos e até mesmo possíveis aliados permanecem no seu encalço e ameaçam a sua existência.

O enredo da série passa, necessariamente, pela explicação do mundo fantástico que Solano criou. O drama e destino do protagonista estão diretamente relacionados à mitologia de Kurgala, a qual nem o próprio espadachim de carvão nem os mortais conhecem de verdade. O segundo livro, como o primeiro, continua sendo uma ferramenta para explicar o passado, de forma quase metalinguística. Mas com algumas diferenças bem positivas.
Leia mais »

A Corrida de Escorpião - arte de Adam S Doyle

A Corrida de Escorpião

Autor: Maggie Stiefvater
Editora: Verus
ISBN:
9788576861843
Ano: 2012
Páginas: 378
Avaliação: 4/5

Puck Connolly pretende ser a primeira mulher a participar da Corrida de Escorpião. Ela precisará vencer não só os outros competidores montados nos seus temíveis cavalos d’água (as feras místicas e predadoras que emergem na praia no inverno), mas todo preconceito da ilha, uma tradição milenar e os seus próprios medos e inseguranças. Seu maior adversário, porém, talvez seja o misterioso Sean Kendrick. Ele não apenas participa e sobrevive à corrida desde criança como já venceu quatro delas. Sean é fascinado pelos cavalos d’água e os entende como ninguém, enquanto Puck os abomina por motivos bem pessoais – e de alguma forma, uma estranha conexão parece se formar entre os dois jovens. O problema é que corrida só pode ter um campeão.

E Puck Connolly não pode perder.

A obra possui um enredo e mitologiais originais, o que não se pode dizer com frequência de livros de fantasia infanto-juvenis. Estranhamento é a palavra que perpassa boa parte do livro, mas de uma forma positiva. A geografia da ilha, a organização social e, principalmente, os cavalos d’água, são muito diferentes dos cenários habituais de fantasia.
Leia mais »

Olhos com fome

O coroa tinha dedos gordos, meio inchados, e quase sempre trazia um chapéu de pano enfiado na cabeça. Um ou outro tinha olhos distantes, pequenos, beirando o vazio. Outros, espertos e esquivos. Mas a maioria pregava  os olhos nos meus, arreganhados, famintos de tempo. E eu pregava meus olhos de volta e sorvia tudo que me ofereciam em grandes goles.

Quase tudo que me davam era amargo, e em tudo havia verdade. Não vou te mentir pra você, repetia um deles. E com todo respeito, acrescentava, para em seguida vomitar morte, violência e tristeza. E força. Uma força tremenda, uma garra absurda que se nega a soltar a vida, por sofrida que seja.

E em todas as bocas, sorrindo zombeteiras ou curvadas de dor, bem no espaço deixado pelos dentes, a mesma exigência – respeito. E de despedida uma generosidade de quem nada tinha: pena daqueles que os desprezam. Porque estes esnobes, pobrezinhos, têm paredes e a elas se fiam. Enquanto eles, que vivem e morrem à céu aberto, sabem olhar pros lados e, sobretudo, para dentro.

Os invisíveis têm um raro tesouro: olhos que enxergam.

À Tânia

Tânia,

Eu sinceramente sinto muito. Sei que isso não significa muito – e não sei se teria significado algo, mesmo se eu não tivesse chegado tão tarde. Mas eu realmente sinto muito. E te peço perdão.

Te o peço perdão porque o teu silêncio é tudo que tenho pra contar de você, e não era pra ser assim. Não era pra eu contar sua história pelo final.

Eu nunca  vi seu rosto. Nunca ouvi sua voz – nem mesmo ouvi seu nome. Eu não sei se era alta ou baixa, negra ou branca – creio que negra. Das poucas mulheres que vi, todas eram. Eu não sei se seu sorriso tinha todos os dentes, ou ao menos muitos deles. Quero acreditar que você sorria, Tânia.

De você eu só conheço o fim: 22 facadas no buraco do rato. 22 facadas. Repeti isso várias vezes na minha cabeça tentando entender, me recusando a aceitar. Vinte e duas facadas. É muita coisa. É muita raiva, muito ódio, muito tempo de golpes rasgando seu corpo. Não sei onde foram, se muito fundos, se te cortaram ou te furaram.

Não sei se estava lúcida, se a fúria do ataque te permitiu entender o que estava acontecendo. Não sei se você lutou pela sua vida, mas sei que a perdeu. Que ela se esvaiu pelo seu corpo aberto junto do sangue escorrendo pela rua – a rua, que não é lugar para ninguém, e que era a sua casa.

Casa sem paredes, sem muros, sem portas nem janelas. Sem trancas nem cadeados. Arreganhada para quem quiser entrar, e quem entrou ao meio-dia foi a morte. Ou antes, a brutalidade.

Porque a morte, essa não teve a decência de te levar de uma vez. Você saiu de casa com vida para sofrer e morrer no hospital. E sem receber nenhuma visita, porque suas duas amigas não eram família.

Sozinha.

Tânia, eu sinto muito. Eu sinto, sinto tanto! Sinto a faca desfigurar seu corpo de 19 anos, mais vezes que o número de anos que você viveu. Sinto o pânico e a impotência de quem assistiu. Sinto a revolta e a dor nos olhos embriagados da sua amiga. Eu sinto como a morte esvaziou sua casa e dispersou os outros moradores, agora toda ela ocupada pelo medo. E mais que tudo, eu sinto o silêncio.

O teu silêncio, Tânia.

 

O silêncio que calou sua vida diz mais do que eu jamais poderei. Então só digo mais uma coisa, e rezo aos céus que você me escute:

Tânia de Cassia Rodrigues da Silva. Moradora de rua assassinada aos 19 anos com 22 facadas no Setor Comercial Sul, na capital do país. Mesmo que eu só conheça o final, carregarei sua história comigo enquanto viver. Eu não me esquecerei de você, Tânia.

Sinceramente,

Valquiria Homero.

Estou fazendo uma série de entrevistas com moradores de rua para uma reportagem que vai concluir meu curso de Jornalismo. Ontem o clima estava pesado porque uma mulher havia sido atacada. Hoje, quando eu voltei, quase não tinha gente no lugar de praxe. Encontrei a amiga da moça um pouco adiante, e ela me confirmou a má notícia que ouvi da boca dos vigilantes. A mulher não resistiu.

Descobri o nome da Tânia procurando por notícias na internet. O assassino e os motivos não foram encontrados. Mas eu sei (e se você ainda está lendo isso, sabe também) que a culpa não é de um sujeito só, é de uma realidade.

E se nós não somos culpados por existir essa realidade, somos culpados por não tentar mudá-la, ou no mínimo refletir sobre ela.

Por favor, pense na Tânia. E pense não só no que você pode fazer para mudar a realidade dessas pessoas, mas principalmente em que você pode mudar. Por favor.

Ela não foi a primeira e certamente não será a última. Mas que isso não seja motivo pra você se manter indiferente.

Ela não será a última, e nós precisamos fazer algo sobre isso.

Lembre-se da Tânia.

As sutilezas em Persuasão

persuasao_14603469181748sk1460346918bAutor: Jane Austen
Editora: Zahar
ISBN:
9788537815533
Ano: 2016
Páginas: 368
Avaliação: 4/5

Anne Elliot é a mais sensata e a mais desimportante em uma família vaidosa e de berço nobre, que subitamente se encontra na embaraçosa situação de precisar alugar sua propriedade no campo e adotar um estilo de vida mais modesto na cidade. Mas para Anne, o pior é saber que seus inquilinos são parentes do capitão Frederick Wentworth, de quem fora noiva na juventude e com quem rompera relações acreditando, na época, estar fazendo um bem a ambos.

Oito anos antes, Frederick era um jovem ambicioso e inteligente, sem nome e sem fortuna. Agora rico, ele parece ter ganho a admiração de todos os amigos de Anne, que muito antes disso já amargava sua decisão. A retomada da convivência com seu antigo amor irá colocá-la diante do ressentimento de Wentworth e do pesado fardo de se considerar digna dele. Mas mesmo o tempo e o desconforto se mostrarão insuficientes para apagar o antigo afeto – talvez, de ambas as partes.

Jane Austen sabe descrever as sutilezas dos relacionamentos humanos com ironia, bom humor e concisão. Persuasão é o último dos seus romances e mais um excelente estudo sobre os preconceitos e valores da Inglaterra rural do século XIX, cuja as principais impressões continuam muito atuaisLeia mais »

Os fundamentos da Cidade Antiga

4c73ab3c6ab0a36a5fc104ec3956560eb736168bAutor: Fustel de Coulanges
Editora: Martin Claret
ISBN: 
9788572327800
Ano: 2009
Páginas: 413
Avaliação: 5/5

Em várias partes do mundo encontramos os mais remotos indícios do culto aos mortos. Fustel de Coulanges demonstra como essa desconfiança de que há algo do homem que sobrevive à si mesmo, e que deve ser honrado, foi a pedra angular que fundou as grandes civilizações antigas – que também sobreviveram a si mesmas, tendo moldado o mundo como o percebemos hoje.

Não tenho o hábito de ler não-ficção, confesso, mas A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges está sendo um grande incentivo para reverter esse quadro. Sempre tive fascinação pela mitologia e sociedade grega, mas isso não me impediu de encarar esse volume com uma certa desconfiança (ouvi coisas não muito agradáveis sobre essas edições de bolso da Martin Claret) e um tanto de preguiça. Que surpresa agradável, encontrar um texto tão objetivo e em linguagem tão acessível! Mas, principalmente, que riqueza de conteúdo nessas 400 e poucas páginas!Leia mais »

Os dilemas da Coruja de Pedra

coruja_de_pedra_1499046889691822sk1499046890bTítulo: Coruja de Pedra
Autor: Fernando Cristino Reis
Editora: Schoba 
ISBN: 
9788580134674
Ano: 2016
Páginas: 217
Avaliação: 3/5

O grande império da Líria está reconquistando seu antigo esplendor a duras penas, combatendo ao mesmo tempo focos anarquistas e a resistência republicana que desponta em diferentes partes do seu vasto território. São nessas circunstâncias que o promissor tenente da polícia secreta, Alec Noctua, é convocado para integrar uma equipe – elaborada pelo imperador em pessoa – cuja missão será decisiva para o império.

Na companhia de colegas muito diferentes de si, mas primorosos em suas áreas, Alec vai descobrir que as batalhas mais difíceis são as que ele precisa travar contra sua própria consciência e contra perdas do passado que insistem em assombrá-lo. Será o desejo de vingança maior que a difícil descoberta de estar lutando do lado errado da história?

Steampunk e fantasia se misturam nessa narrativa em um complexo sistema político, onde a lealdade, a ética e vingança estão em jogo.

O romance de estréia de Fernando Cristino Reis exibe um universo vasto e complexo, talvez até demais para ser apreendido completamente em duzentas e poucas páginas. Mas vamos começar dizendo que fica evidente que o mundo de Coruja de Pedra foi elaborado com muito trabalho, e assim como tudo que é novo, um pouco de trabalho é necessário para compreendê-lo.Leia mais »

1PPD #12 | estrela-guia

Desde pequena, ela rezava para que as estrelas não se apagassem. O brilho esverdeado nunca parecia durar o suficiente, e ainda assim, ele iluminava seu quarto todas as noites quando ela apertava o interruptor, como num passe de mágica. Conhecia a todas, nomeara cada uma, desenhou suas próprias constelações. Aquelas estrelas eram suas, e lhe apontavam o caminho de casa que ela percorria enquanto as luzes no teto brilhassem para ela. E quando as luzes finalmente desbotavam, ela, já não tão pequena, sabia que a jornada estava chegando ao fim. Já estava sonhando.

Ainda na temática de luzes, embora o parágrafo tenha parado de fazer muito sentido no final. Enfim. 93 palavras escritas em 30/1. Imagem original tirada daqui.

1PPD #11 | lux

Os olhos fechados. Só assim encontrava a escuridão, e todos os horrores e medos atrelados a ela. A diferença, é que agora buscava o escuro por vontade própria, não porque gostasse dele, mas porque precisava lembrar. Porque precisava sentir. A solidão, o desespero, a dor. Aquilo tocava com dedos sujos e pegajosos no seu âmago e a apertava com força. Mas tudo bem. Porque quando ela se via no escuro, ela lembrava. Ela sentia.

Abriu os olhos, e viu.

Porque ela era a luz.

Senti uma influência forte do Draccon nesse trecho de 84 palavras escritas no dia 29/1. Até que gostei. Imagem original tirada daqui.