Os dilemas da Coruja de Pedra

coruja_de_pedra_1499046889691822sk1499046890bTítulo: Coruja de Pedra
Autor: Fernando Cristino Reis
Editora: Schoba 
ISBN: 
9788580134674
Ano: 2016
Páginas: 217
Avaliação: 3/5

O grande império da Líria está reconquistando seu antigo esplendor a duras penas, combatendo ao mesmo tempo focos anarquistas e a resistência republicana que desponta em diferentes partes do seu vasto território. São nessas circunstâncias que o promissor tenente da polícia secreta, Alec Noctua, é convocado para integrar uma equipe – elaborada pelo imperador em pessoa – cuja missão será decisiva para o império.

Na companhia de colegas muito diferentes de si, mas primorosos em suas áreas, Alec vai descobrir que as batalhas mais difíceis são as que ele precisa travar contra sua própria consciência e contra perdas do passado que insistem em assombrá-lo. Será o desejo de vingança maior que a difícil descoberta de estar lutando do lado errado da história?

Steampunk e fantasia se misturam nessa narrativa em um complexo sistema político, onde a lealdade, a ética e vingança estão em jogo.

O romance de estréia de Fernando Cristino Reis exibe um universo vasto e complexo, talvez até demais para ser apreendido completamente em duzentas e poucas páginas. Mas vamos começar dizendo que fica evidente que o mundo de Coruja de Pedra foi elaborado com muito trabalho, e assim como tudo que é novo, um pouco de trabalho é necessário para compreendê-lo.

E na minha opinião, esse é de longe o maior mérito do livro: ele traz algo de novo. Ou no mínimo, traz velhos conflitos em uma nova roupagem, muito bem alinhada e polida como o uniforme militar da Cohors Praetoria Nihil — a polícia secreta que serve diretamente ao imperador da Líria em suas casacas vermelhas, através de operações suspeitas que, dizem alguns, beiram o sobrenatural.

Mas vamos retroceder um pouco e explicar o contexto: o império da Líria outrora governou todo o continente, mas algumas regiões conseguiram se libertar do seu domínio e aplicar outras formas de governo. Sob o comando de Maxmiliano III, porém, o império avança novamente. E muito disso se deve às atividades da sinistra CPN, uma legião inteira que, além de fazer a segurança pessoal do imperador, opera de maneira misteriosa nos frontes de batalha com resultados terríveis para os inimigos da Líria.

Aí começa o primeiro diferencial de Coruja de Pedra: o mocinho é, na verdade, um vilão. Alec Noctua é um tenente exemplar da CPN, que não hesita em eliminar os homens simples que dão suas vidas para defender o ideal da república. Mas a vivência no campo de batalha começa a plantar a dúvida na sua mente sobre a moralidade dos seus atos, ao mesmo tempo que ele se percebe sem muitas alternativas.

Questões de estilo

Algumas coisas no estilo do autor me causaram um certo estranhamento, a começar pela tentativa de manter a conjugação dos verbos no presente. Não sou muito acostumada a essa prática e fiquei um pouco confusa, até porque os tempos verbais acabavam se alterando, bem como a perspectiva do narrador de 1ª para 3ª pessoa. E na maioria das vezes a transição foi feita de forma tão sutil (talvez inconscientemente?) que eu ficava com a impressão que tinha deixado passar algo. Frases longas em meio a cenas de ação (que são muitas e muito boas, a propósito) também quebram um pouco o ritmo em alguns pontos.

Em alguns momentos, as cenas eram inseridas como se fossem independentes entre si e reintroduzindo personagens que já são conhecidos do leitor, gerando uma certa repetição. Em outros, cenas que de fato ocorriam em locais ou momentos distintos eram apresentadas em sequência, criando um contraste estranho. Nesse segundo caso, um espaço entre os parágrafos já teria solucionado o problema. Acho que foi descuido da edição, que inclusive deixou passar um número considerável de erros de digitação da segunda metade do livro para o final.

Mas preciso sublinhar o bom uso que o autor faz de flashbacks e elogiar a iniciativa de colocar diferentes perspectivas em pontos-chave da leitura, mostrando o ambiente através dos olhos dos diferentes segmentos da guerra. Fernando também tem uma poética presente em dados momentos, um romantismo até, que poderia ter sido melhor explorado.

Sobre o universo

Sou amiga pessoal do Fernando, e mais de uma vez pude ouvi-lo falar sobre as minúcias do mundo que ele criou no caminho de ônibus até nossa faculdade. Acreditem, ele dedicou muito tempo na criação desse universo. Mas ainda sem essa demonstração presencial do entusiasmo dele, fica evidente na leitura de Coruja de Pedra que todos os muitos arranjos não foram arbitrários.

Etnias, formas de governo, brasões e até mesmo hinos e marchas permeiam toda a leitura, com o bônus de uma linha do tempo das diferentes Eras ao final do volume. Mas um universo tão complexo não é fácil de ser explicado. Em alguns momentos, achei excessivo o uso de nomes em latim e parênteses. Em outros, já senti falta de uma explicação mais detalhada e paciente sobre certos dispositivos que as personagens se valem. E no geral, senti muito a falta de um mapa para me organizar melhor.

Na minha opinião, acho que as informações mais objetivas quanto à organização militar (tipos de legiões e seus vários símbolos, por exemplo), poderiam ter sido colocadas à parte no final do livro — mais ou menos como as casas são explicadas nos livros de Guerra dos Tronos. Assim a leitura teria fluido num ritmo melhor sem as ênfases constantes sobre certos aspectos da ideologia por trás do império.

Em dado momento, o autor se vale de manuais e relatórios dentro do texto para apresentar informações ao leitor, o que foi uma boa sacada. Porém isso não foi feito de maneira muito frequente, e o estilo narrativo desses manuais não se difere do resto do texto (não eram tão impessoais ou formais, como se poderia esperar), então ficou um pouco difícil de comprar a ideia. Mudar a tipografia na transcrição desses documentos poderia ser um bom recurso para deixar essa distinção mais evidente.

Uma outra ideia que me ocorreu seria inserir personagens que naturalmente estão descobrindo a maneira como o mundo a sua volta se organiza – aspirantes do exército, por exemplo, ou descrições mais detalhadas do próprio Alec nos seus anos de academia. Mas isso sou eu sendo mais enxerida que qualquer coisa.

O que não ficou muito claro para mim é se esse universo que o Fernando criou tem uma correspondência direta com o nosso — se seria só um universo alternativo da nossa Terra, ou algo completamente diferente. Referências a estilos como o barroco e o rococó contribuíram para me deixar confusa, e gostaria de saber mais sobre o aspecto religioso/mitológico dos povos do livro.

Sobre as personagens

Essa costuma ser minha parte favorita em todos os livros, e felizmente o Fernando não me decepcionou. As figuras centrais da narrativa, que começam a ter uma ênfase maior da metade para o final, tem uma dinâmica muito interessante entre si, e é possível ver como o relacionamento de Alec e seus colegas de trabalho se desenvolve ao longo das missões alucinantes intercaladas por momentos de convivência. Pessoalmente, o alquimista Flavius Flamus é o meu preferido.

Meus maiores problemas (como sempre) foram com o protagonista. Alec Noctua está longe de ser um personagem raso — só o fato dele passar a duvidar da instituição que serve e precisar lidar com isso já descarta essa possibilidade —, mas ele é um pouco… redondo demais. Aparentemente todas as suas ações são justificadas e as melhores possíveis dadas as circunstâncias em que ele se encontra. Acho que eu me simpatizaria mais com o tenente se ele pisasse na bola de vez em quando (independente se suas ações sejam boas ou más).  E pelo pouco que eu sei sobre militarismo, minha opinião é que ele subiu a uma posição de destaque rápido demais. Acho que o autor poderia ter dado mais tempo para ele crescer na CPN e amadurecer suas dúvidas.

E queria tecer um comentário rápido sobre o interesse romântico do rapaz que, até a metade do livro, é basicamente um acessório. Fiquei muito feliz quando descobri que a moça em questão ia além das aparências e que o relacionamento dos dois era mais profundo e complexo do que se entendia a princípio, mas gostaria de ter visto isso acontecer ao longo da leitura, e não apenas ser informada do fato mais tarde.

Coruja de Pedra, no geral, tem muitos personagens secundários interessantíssimos que eu gostaria de acompanhar o desenvolvimento (como indica o site, será uma triologia), alguns introduzidos de supetão no final deste primeiro livro.

Em resumo

O livro tem uma proposta original, mesclando bem conflitos pessoais e ideológicos com uma pitada de steampunk. Merecia uma edição mais cuidadosa e peca um pouco na hora de explicar as várias facetas que constroem o universo, mas claramente tem muito potencial a ser explorado. Espero voltar a falar da Coruja de Pedra. 

[ESSA RESENHA SE ENQUADRA NA CATEGORIA “DE AUTOR BRASILEIRO” DO MÊS DE FEVEREIRO DO DDL 2018]

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